Dia desses, encontrei uma revista[1] que estava guardada na estante de coisas “para ler um dia”. São muitas, e não acho que, com minha eterna mania de continuar guardando coisas para ler, “logo depois que acabar apenas esse livro”, uma vida só seja suficiente. Essa é a hora exata para acreditar em reencarnação!
Mas a revista era uma daquelas coletâneas de artigos científicos de um congresso. Um congresso de literatura, obviamente. Não participei dele e tenho a vaga lembrança de ter resgatado os anais, em algum sebo. Em meio a vários artigos maravilhosos, encontrei um, com um título sugestivo e assunto mais ainda. Foi o escolhido para esse artigo porque ando me perguntando, sinceramente, o motivo de, apesar de termos excelentes autores brasileiros publicando obras fantásticas, nunca conseguirmos emplacar na “corrente bestseller” de maneira consistente.
Meu pensamento passa por caminhos que levam ao cinema, com a mesmíssima questão: por que é que americanos são os mestres nos filmes de maior bilheteria? O que estão fazendo hoje, os indianos, que com menos recursos que os americanos já sabem produzir mega-sucessos, cinematográficos e literários? O que não temos, ou temos “sobrando”? Será que isso é característica do nosso povo e cultura?
Daí, uma luz! O artigo me apresentou um prisma diferente, não conclusivo (ainda bem!), mas interessante demais. Além disso, tem relação com o artigo da próxima news, P-Prime. De uma forma ou de outra, as coisas acabam fazendo sentido.
Quero compartilhá-lo[2] com você, esperando e torcendo para que utilize os conceitos abordados, seja através de livros de não-ficção, ou pela boca de suas personagens. Quem sabe, não é você o próximo autor brasileiro de bestsellers?
Quando Tamanho é Documento: Por que Johnny Escreve Mais do que João[3]
Dilvo I. Ristoff[4]
Universitários brasileiros e americanos foram informados por seus professores de que, no prazo de duas semanas, deveriam escrever, em sala de aula, durante uma hora e quarenta minutos, uma redação sobre o tema “valores universitários”. Durante duas semanas os dois grupos de alunos ficaram expostos ao mesmo conjunto de textos, entre os quais “Voltando Para Casa: O Novo Menino Bolsista”, de Richard Rodriguez, “Pressões da Vida Universitária”, William Zinzser, “As Universidades Estão Formando Bárbaros Altamente Qualificados”, de Steven Müller, e “Valores Como Padrão de Ação”, de Richard R. Morril. Aos professores coube a tarefa de utilizar esses textos para discussão em sala de aula, e aos alunos foi recomendado, não exigido, que os lessem e estudassem. O objetivo era simples: criar condições para que os alunos pudessem produzir a redação já tendo sido expostos à complexidade do tópico. Cabe mencionar que esse trabalho de pré-escrita está baseado no argumento, hoje enfaticamente sustentado pelos que trabalham com expressão escrita, de que o ato de escrever é um complexo processo de descoberta, organização, comparação, desenvolvimento, adequação e avaliação de ideias, e não fruto de inspiração momentânea de mentes superdotadas.
Em outras palavras, escrever bem tem muito a ver com estudo, dedicação, paciência e, principalmente, suor. Como lembrava o crítico Samuel Johnson, “Um homem sempre consegue escrever se souber se entregar de corpo e alma à tarefa” ou, ainda, como reza a conhecida frase de Bernard Shaw, “escrever é 90% perspiração e 10% inspiração”. Era, em grande parte, a perspiração que pretendíamos resgatar com a estratégia adotada. Tínhamos e temos a convicção de que boas redações raramente são produzidas por alunos que não leram, não discutiram e, portanto, nada sabem do tema sobre o qual devem dissertar. Ao contrário, a prática insiste em demonstrar que a inspiração só logra êxito quando impulsionada por um intenso trabalho de pré-escrita.
É importante lembrar que os alunos e professores só foram informados da questão específica que deveria ser discutida no dia e hora em que as redações foram escritas. De modo que, embora alunos e professores soubessem que o tema da redação seria “valores universitários”, a forma de abordagem que seria proposta permanecia em segredo. A intenção era, por um lado, evitar que os professores, involuntariamente, direcionassem a discussão para um aspecto específico do tema e, por outro, evitar que os alunos, conhecendo antecipadamente a questão, se sentissem tentados a vir à sala de aula com uma redação previamente elaborada.
Cabe, antes de prosseguir, ressaltar que o objetivo do estudo era descobrir o que pensavam e pensam os alunos sobre questões como autoridade, professores, vida profissional, trabalho, lazer etc. Não era nosso objetivo discutir aspectos retóricos ou linguísticos das redações, mas identificar, através delas, os pressupostos que norteiam a discussão dos estudantes sobre a vida universitária, no Brasil e nos Estados Unidos. Apesar de muitas surpresas, obtivemos respostas mais ou menos esperadas para a maioria de nossas perguntas. Essas perguntas e respostas foram discutidas em um estudo mais extenso chamado “Valores Universitários – Uma Comparação Entre Redações de Calouros Brasileiros e Norte-Americanos”, de 1989. Não cabe discuti-las aqui, mas é inegável que contam muito sobre as diferenças ideológicas e culturais que distinguem os alunos dos dois países – diferenças estas que, com certeza, agem sobre os textos dos alunos de forma mais do que tangencial.
O que de imediato mais nos surpreendeu, entretanto, não foi a natureza e a direção ideológica das discussões, mas, simplesmente, a gritante diferença no tamanho das redações. Após estudar esses textos detalhadamente fomos levados a concluir que, ao contrário do que normalmente se acredita, tamanho é documento. Pelo menos até certo ponto, como já lembrava o sociólogo Claude Fischer (1976), é inegável que quantidade se traduz em qualidade. O que os textos sugerem é que reconhecer a complexidade do assunto em discussão, sustentar um argumento com detalhes ilustrativos, desenvolver as ideias adequadamente, entre outros, implica necessariamente escrever mais do que apenas algumas linhas.
Ora, a língua portuguesa é sabidamente mais redundante que a língua inglesa: tem mais concordância nominal, concordância verbal, concordância de gênero, número etc. Isso, somado à origem latina da maioria dos termos da língua portuguesa, com número significativamente menor de monossílabos que a língua inglesa, faz esperar que o volume médio de material produzido, sob condições similares, seja maior em nossa língua. No entanto, no caso em questão, a diferença é marcante exatamente no sentido contrário. Enquanto os estudantes norte-americanos produziram, em uma hora e quarenta minutos, em média três páginas de texto por aluno, os brasileiros produziram apenas uma.
Nossa tendência, dada a nossa auto-imagem extremamente negativa enquanto povo, é atribuir essa diferença a uma menor dedicação dos alunos brasileiros ao estudo do tópico durante as duas semanas que antecederam ao dia da produção do texto. Essa não é uma explicação descartável e, se verdadeira, confirmaria o mito de que o estudante americano estuda mais. No entanto, não temos evidências para fazer uma afirmação categórica a esse respeito, embora concordemos com a definição de “mito” do crítico Leslie Fidler, qual seja a de que “o mito é uma mentira que diz a verdade”.
O que podemos afirmar, no entanto, é que a natureza das declarações dos textos é muito diferente nos dois grupos, e isso talvez explique melhor porque nossos estudantes, no caso em questão, produziram textos menores. Nossas observações mostram que, invariavelmente, o discurso dos universitários americanos se caracteriza por um equilíbrio entre relatos, inferências e juízos, enquanto que o discurso dos brasileiros, via de regra, negligencia o relato e torna-se acentuadamente inferencial e julgativo. Assim, por exemplo, temos a frase de um calouro brasileiro que diz: “Os Centros Acadêmicos atuam de maneira ilusória perante os administradores da universidade”. O aluno, evidentemente, deve ter feito algumas observações para poder inferir que a ação dos Centros Acadêmicos é ilusória. O leitor, no entanto, porque a frase está solta, sem qualquer sustentação e com apenas tênues conexões com frases precedentes e subsequentes, não fica conhecendo essa informação e, por isso mesmo, não tem como saber qual o significado de uma ação ilusória.
Até podemos imaginá-lo, mas a verdade é que o autor não o produziu, e aí está uma das razões de seu texto ser curto e pouco inteligível. O semantista S. I. Hayakawa foi muito feliz ao imaginar uma situação bastante frequente nas cortes de justiça para ilustrar essa falta de relato para sustentar inferências e juízos. Muitas testemunhas, por não perceberem a diferença entre relatos, inferências e juízos, criam impasses às vezes difíceis de superar.
Hayakawa reproduz o seguinte diálogo ilustrativo:
Testemunha: Aquele sem-vergonha me passou a perna!
Defesa: Protesto, Meritíssimo!
Juiz: Protesto aceito (As palavras da testemunha são retiradas dos registros). Queira, por favor, dizer à corte exatamente o que aconteceu.
Testemunha: Ele me passou a perna, aquele rato mentiroso e sem-vergonha.
Defesa: Protesto, Meritíssimo!
Juiz: Protesto aceito. (As observações da testemunha são novamente excluídas dos registros). Queira a testemunha ater-se aos fatos.
Testemunha: Estes são fatos, meritíssimo. Ele, de fato, me passou a perna.
Por mais que se esforce, a testemunha, no caso, não consegue relatar os acontecimentos que a levaram ao juízo que, agora, paralisa o seu pensamento. O juízo construído sobre o agente das ações substituiu de tal forma os seus atos que, na mente da testemunha, estes deixaram de existir e, portanto, sequer conseguem ser comunicados. O pensamento parece aprisionado, parado e, como consequência, pensar no agente se confunde com confirmar o juízo sobre o mesmo. Daí que o discurso é repetitivo, sinonímico, carregado de adjetivos que, na verdade, qualificam mais o sentimento da testemunha do que o agente e as ações que executou. Da mesma forma que o discurso da testemunha, é a redação dos calouros – uma roupa que parece não servir em corpo algum.
Outro exemplo é a frase do calouro brasileiro que diz: “Os representantes do povo dirigem o país como melhor lhes convém”. Novamente, a frase é inferencial e julgativa. Inferencial porque a declaração está baseada em algum ato do governo que fez o autor chegar a essa conclusão; julgativa porque o autor expressa a sua atitude com relação ao observado, ou seja, entende que o governo deveria agir de outro modo. Ora, as inferências e juízos são perfeitamente aceitáveis quando devidamente acompanhados de relatos que os sustentam. O exemplo aqui apresentado, no entanto, é apenas um dos muitos exemplos de inferência e juízos montados no vazio. Mesmo que aceitemos a verdade da inferência, não podemos fugir ao fato de que lhe falta a sustentação, a ilustração, o desenvolvimento da ideia, o relato. Dada essa ausência, o texto se torna obscuro, impreciso ou, utilizando a terminologia desenvolvida pelo semantista S. I. Hayakawa, o texto aparenta reafirmar os traços estilizados de um “mapa” e não a realidade de um “território” ao qual o “mapa” deveria se referir. O tamanho reduzido do texto, novamente, é só uma consequência.
Nos textos dos estudantes americanos, por outro lado, o relato predomina e as inferências e emissões de juízo são, em geral, criteriosamente acompanhadas de exemplificações e descrições. Assim, por exemplo, um aluno escreve que “os pais exercem enorme pressão sobre seus filhos, pois os sete mil dólares que pagam por semestre à universidade fazem com que os pais se sintam com o direito de exigir de seus filhos não só trabalho mas também sucesso”. A quantidade de informações que recebemos nesse caso é notável: ficamos sabendo que a universidade é paga, que os filhos dependem do auxílio financeiro dos pais, que os pais fazem certos tipos de exigências e que o custo da educação durante um semestre naquela escola é de sete mil dólares. Como podemos ver, o aluno saiu do plano puramente inferencial e julgativo, enriquecendo o seu texto, primeiro, com o relato de informação verificável para, em seguida, estabelecer uma relação de causa e efeito entre a dependência econômica e as exigências dos pais. Desse modo, a ideia ganha sustentação e o texto ganha tamanho.
Está aí, sem dúvida, também, uma das explicações para a maior clareza dos textos dos universitários americanos e para o fato de os mesmos terem produzido três vezes mais texto do que seus colegas brasileiros. As inferências e juízos tendem, no caso brasileiro, a paralisar o pensamento, dando a impressão, já nas primeiras frases, de que tudo foi dito e nada mais resta a dizer. Na verdade, entretanto, o informativo, o pictórico, o comunicativo, o que poderia dar mais corpo ao texto, o relato, permanecem engavetados na mente do autor.
Hayakawa argumenta que deveríamos suprimir de nossos textos expressões como “Jack nos pregou uma mentira” em favor de algo como “Jack nos disse que não tinha as chaves do carro. Entretanto, quando, minutos mais tarde, tirou o lenço do seu bolso, um molho de chaves caiu ao chão”. Do mesmo modo, um escritor cuidadoso evitará escrever “vi três homens trabalhando”. Ele sabe que a sua frase será bem mais eficaz se conseguir precisar o tipo de atividade, das milhões possíveis, que os três homens estavam executando. Lavando automóveis? Transformando chuchu em cereja? Cortando grama? Recolhendo o lixo das ruas? Vendendo bilhetes de loteria? É fácil ver que o relato adiciona ao texto muito mais do que simplesmente tamanho. Por situar-se nos primeiros degraus da escada das abstrações, o relato cria distinções, acrescenta clareza à intenção do autor, dá vividez ao texto, desnuda as palavras ocas e afasta, de vez, o espectro de Babel.
Nas redações que analisamos e que continuamos a estudar, o hábito de julgar e de inferir sem analisar, discutir e descrever é marcantemente brasileiro. A impressão que se tem é de que os textos já nascem gastos, que já foram “escritos” pelo espírito da nação e que, agora, sob forma de clichês, estão sendo transferidos para as páginas produzidas por nossos universitários. Independentemente de preferências ideológicas e xenofobia à parte, não podemos fechar os olhos à constatação de que falta aos nossos alunos o hábito de observar mais, o hábito de relatar mais e de julgar e inferir menos. Falta-lhes, talvez, simplesmente, a oportunidade para que possam desenvolver estas habilidades. Como quase tudo na vida, também isto se aprende. Com a palavra os professores de redação.
Bibliografia
- DONAHUE, Patricia e QUANDAHL, Ellen. Reclaiming Pedagogy: The Rhetoric of the Classroom. Carbondale: Southern Illinois University Press, 1989.
- DI YANNI, Robert. Connections: Reading, Writing and Thinking. Upper Montclair, New Jersey: Boston/Cook Publishers. Inc., 1985.
- DODDS, Jack. The Writer in Performance. New York: Macmillan Publishing, 1986.
- FISHER, Claude. The Urban Experience. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1976.
- HAYAKAWA, S. I. Language in Thought and Action. Harcourt. Brace Jovanovitch, 1939.
- MESSNER, Gerald e MESSNER, Nancy. Patterns of Thinking. Belmont: Wadsworth, 1974.
- ROBERT, William e TURGEON, Gregoire. About Language. Boston: Houghton Mifflin Co., 1986.
- STEINMAN JUNIOR, Martin. Words in Action. New York: Harcourt Brace Jovanovitch, Inc., 1979.
- DILVO I. RISTOFF Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrado em Letras – Língua Inglesa e Literatura Correspondente – pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em Literatura Americana pela University of Southern California – Los Angeles/EUA. Além de inúmeros artigos publicados no Brasil e exterior, é autor do livro: Updike’s America. New York: Peter Lung, 1988.
[1]: Bianchetti, L. (1997). Trama e Texto. Universidade de Passo Fundo: Ediupf.
[2]: Não tive coragem de resumir o trabalho. Em minha opinião, ele está perfeito, tal como foi escrito. Assim, apresento-o na íntegra.
[3]: Uma versão deste artigo foi originalmente publicada na Revista Perspectiva do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço ao Conselho Editorial da Revista pela licença concedida a fim de incluí-lo nesta coletânea.
[4]: Professor titular do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi Pró-Reitor de Graduação da UFSC de maio de 1992 a maio de 1996.
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